“Tenho um filho com uma doença rara”

Quotidiano
Última atualização: 06/10/2022

O testemunho de um pai de uma criança albina e a prova de que a capacidade de resiliência familiar permite ultrapassar todos os obstáculos.

Durante a gravidez do meu segundo filho, há uma frase que ainda hoje recordo quando a minha mulher se questionava sobre como seria o cabelo do Afonso: “Pelo menos têm uma certeza, ele não será loiro”. Para dois pais morenos, de cabelo muito escuro e com um primeiro filho também moreno, o vaticínio em tom de brincadeira parecia fazer sentido… mas o Afonso tinha outros planos para a lógica.

A primeira estranheza com a criança “loira” que nascia chegou pela enfermeira que realizava o parto e que soltou um “nunca vi cabeça tão trigueira”. Mas a admiração estendeu-se rapidamente aos demais profissionais de saúde face ao improvável quadro de família, um espanto que era notório também nas outras mães que partilhavam a enfermaria e nas visitas que fomos recebendo nesses primeiros dias.

Ainda na sala de parto, lembro-me de alvitrar a possibilidade de albinismo, mas no calor do momento e com o Afonso acabadinho de chegar, o mais importante para nós, o facto do cabelo louro muito claro era apenas mais um toque de classe do rapagão.

Depois de sair do hospital, nesse mesmo dia, passei a noite na Internet a procurar pistas e caminhos que explicassem aquela tonalidade do cabelo do Afonso.

Ao mesmo tempo que seguia a pista do albinismo, recordo-me de não colocar de lado a hipótese de os antepassados explicarem o tom demasiado claro do seu cabelo.

Com as pistas a apontarem para albinismo, e com um hospital que não percebeu logo que a diferença de tons capilares entre pais e filho podia ser mais qualquer coisa, foram os primeiros pediatras a verem o Afonso (apenas dois dias depois) que sinalizaram a possibilidade da doença. As memórias desse tempo são de receios do que implicaria para a vida normal do Afonso o albinismo e de uma sede imensa por mais informação e pesquisa constante sobre o tema. E, sendo albinismo, de que tipo seria e que impacto teria na visão, já que, como íamos lendo, a baixa visão poderia significar uma perda reduzida ou muito acentuada (legalmente cego).
Estávamos ainda na fase do “deve ser”, porque a confirmação só chegou mais tarde juntando as peças da oftalmologia (o albinismo que o Afonso tem é óculo-cutâneo, o que implica baixa visão) às da dermatologia (a pele não tem pigmentação e é imperativo o cuidado com o sol).

Em pouco tempo tirámos uma espécie de especialização caseira em albinismo, com a informação que fomos encontrando em grandes associações de albinos estrangeiros (como a National Organization for Albinism and Hypopigmentation, NOAH, na América do Norte) e com livros que encontrámos para pais que têm filhos com albinismo (“Raising a Child With Albinism”, também da NOAH). Em Portugal, a informação ou é muito escassa ou não existe.

Além disso, e como a ausência de melanina no Afonso provoca baixa visão, fomos trabalhando de perto com todas as ajudas disponíveis. Começámos desde cedo a levar o Afonso à única consulta integrada de baixa visão do país, no Hospital Pediátrico de Coimbra, e uma equipa do Centro de Apoio à Intervenção Precoce na Deficiência Visual (CAIP-DV), pertencente à Associação Nacional de Intervenção Precoce, que avalia regularmente as competências e evolução do Afonso no campo visual. Acionámos, também, uma equipa que nunca ouvíramos falar até aí, a ELI – Equipa Local de Intervenção, que permitiu que o Afonso tivesse, e continue a ter, um acompanhamento de estimulação visual regular no berçário e na creche.

Para parte das pessoas, percebemos que o albinismo é ainda um mistério. Desde pensarem que têm os olhos vermelhos (efeito da passagem da luz no olho) até acharem que os albinos só veem à noite, facilmente percebemos o desconhecimento em relação à doença. Desconhecimento esse que passa para os ecrãs de cinema, onde se colocam os albinos, normalmente, nos papéis de vilão.

Muito mais conhecedores do albinismo, concentrámo-nos, então, nas duas grandes lacunas provocadas pela doença: a visão e a proteção da pele face ao sol.

Comprámos alguns produtos específicos para estimulação visual, outros foram feitos pela mãe, e criámos o ambiente na casa para estimular sempre a visão onde estivesse (trocador de fraldas, berço, cama).

Quanto ao sol, é toda uma nova relação. Como a pele não tem proteção, cremes de fatores elevados e roupas que cobrem mais o corpo fazem parte do dia a dia do Afonso. Além disso, os óculos que já utiliza contemplam também filtros para combater a luminosidade e proteger dos UV.

Claro que, do ponto de vista orçamental, a doença implica alguns custos para a família, especialmente nas muitas deslocações a médicos, nos produtos de proteção solar e nos óculos e mesmo que exista uma bonificação do abono de família para crianças e jovens com deficiência, da Segurança Social, o valor não cobriria nunca as reais necessidades do Afonso.

O certo é que somos uma família sui generis que faz rodar cabeças e que suscita, na sua maioria, reações positivas e simpáticas manchadas, por vezes, por alguns comentários menos agradáveis para os pais (especialmente para o pai).

O Afonso é o mais novo dos rapazes cá de casa. Ao irmão mais velho explicamos regularmente, e nos momentos certos, as implicações do sol ou a utilidade dos óculos. A comunidade escolar e de apoio tem também estado sempre presente para providenciar o melhor dos cuidados ao Afonso e descobrimos um mundo de associações e apoios nos hospitais e fora deles que estão lá para ajudar.

Sabemos, ainda, que se quisermos aumentar a família temos a probabilidade de 25% de ter um filho com albinismo, 50% de ter um filho apenas portador da mutação genética sem manifestação da doença, e 25% de não ter nem albinismo nem transportar a mutação genética que eu e a mãe transmitimos ao Afonso.

Se a probabilidade de ter um filho com albinismo é de 1 para 17 mil nascimentos, a nossa probabilidade chama-se Afonso e, por ele, adoramos cada vez mais a matemática da vida.

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